A estátua da Beata Benigna, inaugurada há um ano em Santana do Cariri (CE), com 26 metros de altura, está sendo desmontada para dar lugar a outra completamente nova. O motivo: desde o início o monumento tem sido alvo de críticas dos fiéis, que reclamam do rosto com “feições de adulta” e “mal feito”, sem nenhuma semelhança com a imagem oficial da Menina Benigna. A reprovação chegou a cerca de 90% dos fiéis, segundo o secretário de Cultura, Turismo e Romaria do município, Ypsilon Félix. A empresa responsável pela construção da estátua foi escolhida por meio de licitação, mas “não atendeu às especificações solicitadas”, disse ele ao jornal O Povo (CE).
A nova estátua já está em construção – a expectativa é que esteja pronta para ser instalada no próximo mês, durante as romarias em homenagem à Menina Benigna, realizadas de 15 a 24 de outubro. O artista encarregado da obra é o escultor cearense Pedro Pereira de Souza, especializado em produção de imagens sacras.
Como não há fotografias de Benigna, morta em 1941, aos 13 anos, não se sabe exatamente como ela era – a imagem que se tem hoje é uma recriação, que destaca a sua face com meiguice e inocência, como a de uma menina.

A decisão de desmontar a estátua atual e construir outra foi tomada pelo governador Elmano de Freitas (PT), em abril passado, em acordo com o prefeito de Santana do Cariri, Samuel Werton (PT), e com anuência da Diocese do Crato.
O projeto para o local inclui, além da estátua, todo um complexo dedicado à Beata Benigna, com uma capela, um memorial, templo para missas campais, uma trilha (“Caminhos do Martírio”, com cerca de 600 metros, estacionamento e jardins arborizados – a um custo total, em valores de hoje, de R$ 15 milhões, investimento bancado pelo governo do estado. Não foi divulgado se a empresa que ganhou a licitação arcará com as despesas da nova estátua.

MARTÍRIO
Benigna Cardoso da Silva, a Menina Benigna, era órfã de pai e mãe. Foi assassinada com uma série de golpes de facão, ao resistir a um ataque sexual de um colega de 16 anos, em 24 de outubro de 1941. Sua morte é hoje símbolo da luta contra o feminicídio no Ceará. Uma lei de 2019 tornou o 24 de outubro Dia Estadual de Luta contra o Feminicídio.
O rapaz que matou Benigna foi preso, cumpriu pena e, ao ser libertado, tornou-se devoto dela. O testemunho dele, concedido a um padre local, falando sobre o crime e a resistência da menina contra o seu ataque, foi importante para a beatificação da Menina Benigna – cujo processo começou em 2011, com a coleta de dados e testemunhos. Em 2019 o papa Francisco autorizou a beatificação, oficializada em 2022.
A beatificação, ato que antecede a canonização, permite que a pessoa alvo do reconhecimento seja cultuada em uma comunidade específica, região, diocese ou nação. Mas o culto à Menina Benigna já ocorre há muito tempo antes disso, com pessoas fazendo peregrinações ao seu túmulo e a tratando como “santinha”. Em homenagem à sua memória, as mulheres usam vestido vermelho com bolinhas brancas – roupa que a Menina Benigna estaria usando no dia em que foi morta, segundo versão que predominou ao longo do tempo.
Com uma população de cerca de 17 mil pessoas, Santana do Cariri integra a rota turístico-religiosa da Região do Cariri cearense, que tem ainda Juazeiro do Norte, terra do Padre Cícero; Crato, com a festa de Nossa Senhora de Fátima, e Barbalha, com a festa de Santo Antônio.
Para quem desejar conhecer mais toda esta história, há pelo menos duas biografias: “Benigna: um lírio no sertão cearense”, de Armando Rafael, Paulo Alves, Plácido Nuvens, Sandro Cidrão e Ypsilon Félix (Editora BSG, 2014), e “Resgatando uma história de fé: Benigna e Resgatando a memória de Santana do Cariri”, de Sandro Cidrão (Edição Control P Soluções Gráficas, 2014). Para crianças tem “Benigna: A Menina Mártir do Sertão do Cariri”, de Dílvia Ludvichak, com ilustrações de Veruschka Guerra (Paulus Editora, 2022).
OBRAS QUE DERAM ERRADO
O caso de Santana do Cariri é de uma obra original, mas assemelha-se a exemplos de restaurações que se tornaram famosas por ficarem muito distante do resultado desejado.
O mais impactante deles ocorreu na Espanha, em 2012, com um afresco de Jesus Cristo, intitulado “Ecce Homo”, de autoria de Elías García Martínez e datado do século 19. Uma restauração da pintura feita por Cecília Gimenez, de 81 anos, teve repercussão internacional, por parecer muito diferente do original. Tornou-se um dos maiores memes da internet.

Outro caso, igualmente na Espanha (na cidade de Palência), verificou-se em 2020, com a restauração de uma estátua na fachada de um edifício – onde antes havia o rosto de uma mulher sorridente, ficou outro que, segundo um artista local, parecia o de um personagem de desenho animado. O jornal britânico The Guardian afirmou na época que o semblante da obra restaurada tinha uma “ligeira semelhança” com o então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.

Tivemos um terceiro exemplo no Brasil, em abril de 2025, em Pirenópolis (GO), com uma imagem do século 18 de Nossa Senhora das Dores. A restauração causou revolta entre os fiéis e gerou até uma reclamação formal do Iphan. Na nova versão, a santa ficou mais clara, os lábios estão vermelhos, como se estivessem com batom, as bochechas rosadas (como sob o efeito de blush) e os cílios bem delineados. As lágrimas bem visíveis na obra original do século 18 foram atenuadas sob uma quase transparência. A mídia noticiou o caso chamando de “harmonização facial” as alterações na imagem da santa.

Antes de todos esses exemplos, houve um hoje praticamente esquecido, de 1995, com uma estátua de Luiz Gonzaga, em Carpina (PE). A escultura trazia Gonzagão com o rosto sem olhos, nariz, boca e orelhas. As mãos não tinham dedos e o teclado da sanfona era representado por parafusos. O sanfoneiro era representado como um homem magro, sem gibão e calçando sapatos.
Mas, neste caso, as características não se deviam a falhas, e sim a um propósito do escultor, Carlinhos Melo, que afirmou ter procurado “fugir do convencionalismo” e fazer “algo de vanguarda”.
“Eu quis fazer uma homenagem a uma figura popular incorporando características do mundo moderno, como a informática, a robótica, a realidade virtual”, disse ele.
A estátua foi mais tarde retirada, em virtude da reação da população.
Lembro bem essa história porque fui o autor de matéria sobre o caso, publicada na Folha de S. Paulo de 25 de julho de 1995, com o título “Cidade rejeita estátua de Gonzagão”, e que pode ser lida aqui: Folha de S.Paulo – Cidade rejeita estátua de Gonzagão – 25/7/1995



