O 28 de julho é um dia emblemático para a história do cangaço. Marca a morte de Lampião, ocorrida em 28 de julho de 1938. Aproveitando a oportunidade da data, trago aqui a história de um cangaceiro que ninguém sabe que paradeiro teve, que não ficou conhecido por ferocidade, bravura ou participação em combates célebres e que carrega, sem dúvidas, o apelido mais bizarro da história do cangaço: “Pau de agasalhar urubu”. Ele é o que aparece sob o número 1 na foto acima, tirada ao ser preso em março de 1925, com dois companheiros: “Manoel Preto” e “Fato de Cobra” (outra denominação que, suponho, não devia causar boa impressão em quem a escutava…).
A primeira vez que vi esta foto – só a foto, a reprodução do jornal eu que incluí agora – foi na conta @cangacoeternooficial. Fiquei curioso em saber se ele fora cangaceiro mesmo, porque está sem a vestimenta típica do cangaço. Além disso, eu nunca ouvira falar de um cangaceiro com tal nome. Nas listas que encontrei dos apelidos dos cangaceiros, não consta o dele. “Pau de agasalhar urubu” soa inusitado até para os padrões do cangaço na designação de seus integrantes. Não é um daqueles, na definição de Pedro Alexandre Sanchez, “apelidos luminares do cangaço”. Possui uma sonoridade diferente, com três palavras (e não duas, como era mais comum: Jararaca, Besta Fera, Diabo Louro, Lasca Bomba, Asa Branca, Serra do Mar…).
Por fim, não aparece nos artigos nem nas obras de um autor que – embora não seja historiador – é para mim uma autoridade no assunto, Graciliano Ramos.
Antes de contar o que se sabe dele, permitam-me explicar que a expressão pau de agasalhar urubu não tem nada a ver com cheiro, cor ou alguma perversidade. Refere-se a pessoas altas. Se a pessoa fosse magra além de alta, melhor ainda, porque “combinaria” mais com o pau de agasalhar urubu, aqueles galhos altos, em que o animal costuma ficar para tomar sol.
No Agreste de onde eu vim, lembro de ter ouvido essa expressão de uma avó, que era natural de Rio Branco, hoje Arcoverde, município que fica na divisa do Sertão com o Agreste – região onde o cangaceiro de que estamos falando foi preso, em 1925.
DEU NO JORNAL
A curiosidade sobre o cangaceiro levou-me a continuar procurando mais informações sobre ele. No Blog do Mendes e Mendes, encontrei a mesma foto e uma indicação de fonte, o Jornal Pequeno, que circulava em Pernambuco nos anos 1920. Não havia, porém, reprodução da página nem maiores informações sobre o cangaceiro.
Ou seja, havia apenas uma foto e um nome.
Na Hemeroteca da Biblioteca Nacional localizei a coleção do Jornal Pequeno e a notícia da prisão dele, na edição do dia 14 de março de 1925, ou seja, há 100 anos…
Aí o ciclo se fechou. Agora estavam juntos a foto, a notícia e a história.
Vocês não podem imaginar minha alegria ao ler a matéria, publicada um século atrás, e tão rica de informações que parece escrita para ser lida um século depois por interessados no assunto…
No final desse texto, compartilho o link para que todos possam acessar a página.
(Uma observação: Nem nas postagens citadas nem na página do Jornal Pequeno há explicação para o significado de “pau de agasalhar urubu”. Os créditos aqui devem ir para minha avó, que partiu faz muito tempo…)
REPORTAGEM
A foto da matéria é de Otaviano Neves. As informações foram colhidas pelo correspondente do Jornal Pequeno na cidade, Américo Magalhães, e provavelmente o texto foi finalizado na sede, no Recife.
A notícia informa que o primeiro a ser preso foi “Fato de Cobra”, em Rio Branco (Arcoverde). A princípio, ele negou fazer parte do bando de Lampião, mas resolveu confessar tudo, diz a reportagem, após ser “habilmente interrogado” durante cinco horas…
“Fato de Cobra”, segundo o jornal, chegara a ser um dos 10 homens de confiança de Lampião.
Após o “hábil interrogatório” de cinco horas, ele contou que seus dois outros companheiros estavam escondidos na zona rural de Alagoa de Baixo (atual município de Sertânia) – e lá eles foram presos. “Fato de Cobra” confessou ainda que participara de alguns dos principais combates recentes do bando de Lampião, como o de Souza (PB), Custódia (PE) e o de Mata Grande/Serrote Preto (AL) – este um dos mais conhecidos do cangaço, com muitas baixas entre as forças policiais. Dos cangaceiros, conforme o depoimento dele, morreram pelo menos dois: “Muriçoca” e “Carró”.
A reportagem detalha brutalidades cometidas por Lampião e seu bando, de acordo com o depoimento de “Fato de Cobra”. Vejam:
“Fato de Cobra, que parece ser o mais cínico e perverso [dos três presos – grifo do Blog], conta que no combate de Mata Grande, após a retirada da força [policial], Lampião cortou a orelha do tenente Oliveira, da polícia paraibana, mandando salgá-la e guardando-a suspensa à cartucheira.
Conta ainda, com o maior cinismo, que, de um dos soldados mortos, foram arrancados os olhos, sendo colocadas nas órbitas duas cápsulas de balas de rifles.
Um outro soldado, vítima da sanha dos referidos bandidos, teve o crânio aberto a golpes de machado.
Diz mais “Fato de Cobra” que um dos soldados morto no confronto de Serrote Preto foi esquartejado.”
(Uma observação do Blog: O que está aí é a transcrição de trechos da matéria do Jornal Pequeno. Não estamos afirmando que os fatos aconteceram exatamente assim. Considere-se que foram informações dadas por um preso na cadeia).
E “PAU DE AGASALHAR URUBU”, O QUE ELE DISSE?
A matéria informa que ele “chorou” e se disse arrependido de participar do grupo de Lampião. Assim como no caso de “Fato de Cobra”, devemos levar em consideração que o entrevistado se encontrava na cadeia.
Eis o que diz a matéria sobre ele:
“José Ramos de Oliveira, vulgo Pau de agasalhar urubu, é um tipo simpático, de cor branca, representando 25 anos e natural da Paraíba.
Dos três [presos], era o mais novo do bando, pois, segundo confessa, alistara-se nas fileiras de Lampião havia 2 meses.
Não tomou parte no ataque de Souza (PB) e, segundo declarou “Fato de Cobra”, também não ficou no combate de Mata Grande (AL).
De compleição franzina, diz que, doente, viu-se obrigado a abandonar o grupo por não suportar o ‘trabalho’… [aspas e reticências da própria matéria].
Assistiu à entrada do bando em Custódia, Algodões (Sertânia), Jeritocó e Brejo do Prioré (na cidade de Ibimirim)
Deixou o grupo em Jeritocó.
De vez em quando chora e diz-se arrependido de ter entrado no banditismo. Assegura que estava resolvido a não mais fazer parte do grupo de cangaceiros e ia procurar um trabalho onde ganhar a vida honestamente, quando foi preso”.
Aí encerra-se o que sabemos sobre o cangaceiro “Pau de agasalhar urubu”.
Que fim teve? Cumpriu pena? Tornou a entrar no cangaço? Foi perseguido até o fim da vida pelo apelido?
Se alguém souber, avise aqui…
P.S.: E “Fato de Cobra”, pode perguntar o leitor, qual o significado? A expressão designa o processo de mudança de pele das cobras – sai a pele antiga, entra uma nova. Este apelido estaria ligado à dissimulação, indicativo de que a pessoa “mudava de pele” dependendo da ocasião?… Não sei. Aqui tem um texto da Britannica explicando por que as cobras trocam de pele: https://www.britannica.com/science/Why-Do-Snakes-Shed-Their-Skin
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REFERÊNCIAS
A página original do Jornal Pequeno, com a notícia sobre a prisão de “Pau de agasalhar urubu”: https://memoria.bn.gov.br/docreader/DocReader.aspx?bib=800643&pagfis=38078
A obra de Graciliano Ramos tem diversas referências a cangaceiros. Há um livro específico com artigos dele sobre o assunto: “Cangaço” (Editora Record /2024/ 2ª edição)
Artigo de Pedro Alexandre Sanchez em que ele fala nos “apelidos luminares” de cangaceiros: https://www.cartacapital.com.br/cultura/livros-exploram-as-visoes-masculina-e-feminina-do-bando-de-lampiao/