Um caso ocorrido em Minas Gerais levanta a questão: um vereador pode invadir órgãos públicos para fazer uma suposta fiscalização? O vereador Wladimir Antônio Canuto (Avante), do município de Felício dos Santos (MG), fez isso e teve o mandato cassado na última quinta-feira (17) pela Câmara de Vereadores, por quebra de decoro parlamentar. Ele foi acusado de invadir uma Unidade Básica de Saúde e entrar numa sala de emergência durante atendimento a um paciente de 93 anos, com arritmia cardíaca grave. O paciente morreu. As informações são do Estado de Minas e da Folha de S. Paulo.
A defesa do vereador afirmou que a ação dele na unidade de saúde faz parte do seu “exercício da atividade parlamentar” e que iria recorrer da decisão, porque ele “é inocente” e “o processo político-administrativo contrariou garantias constitucionais”.
Muitos casos semelhantes têm ido parar na Justiça. Para quem deseja entender um pouco mais o assunto vale a leitura da decisão do desembargador João Batista Damasceno, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (link no final da matéria), referente ao município de São Gonçalo (RJ).
Atendendo pedido da Fundação Municipal de Saúde, o magistrado proibiu o que chamou de “reiterada prática” de um vereador da cidade, que ingressava nos órgãos públicos com “equipes de seguranças e assessores midiáticos”, a pretexto de fiscalizar, “causando perturbação da ordem e da rotina administrativa das respectivas repartições de saúde, de modo a coagir e intimidar com palavras agressivas vários servidores públicos”.
Chamo a atenção para 4 pontos-chave na decisão do desembargador João Batista (os negritos nas frases são meus, não dele):
- Sobre os limites da fiscalização por vereadores: “O poder fiscalizatório do Poder Legislativo não pode ser exercido de forma ilimitada, notadamente por um membro individualizado do Poder sem que se constitua comissão a que a respectiva Casa tenha atribuído poderes, devendo observância aos ditames previstos na Constituição da República, que não prevê acesso ilimitado a órgãos ou repartições públicas, bem como a todo e qualquer documento.”
- Quando a fiscalização torna-se um ato ilícito: “Em tese, o parlamentar que utiliza de suas próprias razões e protagoniza feitos midiáticos a pretexto de fiscalização de órgãos públicos ou mesmo de atividades privadas sujeitas a regulamentação pelo poder público, pratica ato ilícito.”
- O que diz a legislação: “Portanto, haja vista o princípio da legalidade e publicidade, é inequívoco que não encontra guarida na legislação a conduta de membro do Poder Legislativo, que, valendo-se do mandato parlamentar, ingressa irrestritamente em prédios públicos e em áreas especiais destinadas apenas aos funcionários, assim como tenha acesso a documentos sem que haja qualquer procedimento administrativo prévio e que possibilite, até mesmo, o controle sobre sua atuação.”
- Sobre tensão eleitoral e os riscos de danos: “Por sua vez, o risco de dano irreparável é patente, pois caso se permita que novos atos similares sejam praticados pelo réu/agravado, o que pode se intensificar diante do fato de estarmos em ano eleitoral, período em que as tensões políticas tendem a aumentar consideravelmente, poderá haver grave comprometimento da regularidade de prestação de serviços públicos essenciais.”
A decisão do desembargador, em fevereiro de 2022, foi confirmada em abril do mesmo ano, pela 24ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Na sentença (link também no final do texto), um 5º ponto-chave transcreve o entendimento do STF sobre a questão, explicitado no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.046, que teve como relator o ministro Sepúlveda Pertence, em 15/04/2004 (o negrito, aqui, não é meu; é do texto original):
“O poder de fiscalização legislativa da ação administrativa do Poder Executivo é outorgado aos órgãos coletivos de cada câmara do Congresso Nacional, no plano federal, e da Assembleia Legislativa, no dos Estados; nunca, aos seus membros individualmente, salvo, é claro, quando atuem em representação (ou presentação) de sua Casa ou comissão.”
Os links das duas decisões judiciais, ambos obtidos no site Consultor Jurídico (conjur.com.br):
A de fevereiro de 2022: https://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/tj-rj-proibe-vereador-invadir-orgaos.pdf
A de abril de 2022: https://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/tj-rj-confirma-veto-vereador-invadir.pdf